ENTREVISTA
ALBERTO RODRIGUES DA SILVA
“Portugal pode afirmar-se como um espaço de inovação de referência na Europa”
Por Bruna Ferreira
É uma referência para várias gerações de engenheiros formados no Instituto Superior Técnico e para inúmeros investigadores ligados ao INESC-ID Lisboa. Mesmo quem nunca passou pelas suas aulas reconhece-lhe o papel ativo como Secretário de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa no anterior Governo. Todos os outros têm nesta entrevista uma oportunidade privilegiada de conhecer a visão e as perspetivas de Alberto Rodrigues da Silva — figura com notável percurso científico, que alia o pensamento estratégico à capacidade de ação política. Uma combinação rara e particularmente relevante num momento em que a Europa exige soluções concretas e inteligentes, tema central desta edição da QuidNews.
Nesta entrevista, analisa com clareza os principais relatórios sobre o futuro da Europa, identifica os pontos de convergência entre as suas recomendações e traduz esse entendimento em propostas concretas, sempre com a convicção de que Portugal pode (e deve) desempenhar um papel central como território de experimentação e inovação à escala europeia
Muito se escreveu nos relatórios de Letta, Draghi e Heitor sobre o caminho que a Europa deve seguir para reforçar a sua competitividade e autonomia estratégica. Que prioridades considera mais urgentes para que essas recomendações se traduzam em políticas concretas e eficazes?
Os relatórios de Letta, Draghi e Heitor apresentam diagnósticos convergentes sobre a perda de competitividade económica e tecnológica da UE face a outras regiões do mundo. Identificam desafios estruturais e apontam como prioridade estratégica o reforço da autonomia europeia em setores-chave do conhecimento, da inovação e da indústria. Neste contexto, a Comissão Europeia lançou em janeiro de 2025 a “Bússola para a Competitividade”, um quadro estratégico que visa tornar a UE mais competitiva através da investigação, do desenvolvimento e da comercialização de tecnologias inovadoras, bem como alcançar de forma pioneira a neutralidade energética. Esse documento estabelece objetivos orientadores como: acelerar a atividade empresarial, construir uma indústria limpa, promover a economia circular, adotar tecnologias digitais, recentrar a economia na inovação, atrair investimento e reduzir o défice em competências.
No entanto, a concretização desta ambição europeia exige que esses objetivos se traduzam em políticas eficazes, com impacto direto na sociedade e na economia. Um exemplo é a iniciativa “InvestAI”, anunciada em fevereiro de 2025 na Cimeira de Ação sobre Inteligência Artificial em Paris, com um pacote financeiro de 200 mil milhões de euros, que inclui um fundo de 20 mil milhões para o reforço das infraestruturas europeias de IA e computação avançada.
Pode sublinhar algumas recomendações relevantes, no que toca à realidade portuguesa?
Sim. Primeiro, é necessário uma aposta nas pessoas e nas suas competências. É fundamental investir no talento e nas competências das pessoas, sobretudo nas áreas relacionadas com a transição digital e a transição verde. Apesar dos avanços na formação na área das STEM, é fundamental alinhar a oferta da educação com as reais necessidades da economia e reforçar o investimento nas qualificações, de modo que Portugal possa cumprir os exigentes compromissos definidos neste âmbito no programa da “Década Digital 2030”.
Segundo, é necessário uma aposta no apoio à industrialização de setores estratégicos. Para tal, importa identificar e apoiar os setores mais estratégicos da nossa economia – sejam eles (a título de exemplo) digital, agroindústria, biotecnologia, aeroespacial ou economia azul – e reforçar a dinamização de ecossistemas locais e internacionais de inovação. Em Portugal, programas como os CoLABs ou as Agendas Mobilizadoras, desenhadas no âmbito do PRR, ilustram esse esforço de criação de valor económico e social com base em investigação aplicada e na cooperação entre diferentes atores.
Terceiro, é fundamental reduzir a burocracia e acelerar a modernização e digitalização da administração pública (área que me foi particularmente cara ao longo deste período do XXIV Governo). É necessário reforçar a eficácia do setor público e aumentar a confiança dos cidadãos nas instituições. A burocracia excessiva, e.g., marcada por procedimentos redundantes, fragmentação de competências e rigidez normativa, continua a limitar a capacidade de resposta da administração pública (AP) e a travar a inovação e o desenvolvimento económico. A resposta passa por simplificar também a regulação, redesenhar processos e desmaterializar procedimentos, promovendo uma cultura centrada na eficiência e na criação de valor. A digitalização deve ir bem além da mera informatização de práticas existentes: deve exigir uma nova AP mais digital, assente em plataformas interoperáveis, inteligência artificial responsável, gestão inteligente de dados e interação proativa com os cidadãos.
No plano europeu, instrumentos políticos como a “Década Digital 2030” e o “Interoperable Europe Act” apontam para uma administração mais coesa e integrada, assegurando a interoperabilidade de sistemas ao nível de cada Estado-membro ou ao nível da UE e, por conseguinte, facilitando a mobilidade de cidadãos no espaço europeu. Em Portugal, programas como o Simplex ou iniciativas relacionadas com governo aberto, dados abertos e territórios inteligentes demonstram o potencial transformador da inovação e das tecnologias emergentes no seio da AP e da economia em geral. No entanto, permanece a relevância de uma maior avaliação da qualidade e do impacto desses programas, para garantir que a transformação digital se traduza em melhor serviço público, mas também na redução de custos e em melhor desempenho institucional.
“Apesar dos avanços na formação na área das STEM, é fundamental alinhar a oferta da educação com as reais necessidades da economia e reforçar o investimento nas qualificações.”
O relatório Heitor destaca a importância de reforçar os laços entre conhecimento, ciência e inovação. Como professor, investigador e governante, como avalia as sinergias entre academia, administração pública e setor tecnológico no nosso país? Somos um bom exemplo para a Europa?
Portugal tem dado passos no reforço das sinergias entre academia, administração pública e setor tecnológico, tem promovido uma articulação mais estreita entre a produção de conhecimento e a sua aplicação prática. Iniciativas como os CoLABs (Laboratórios Colaborativos) e as Agendas Mobilizadoras para a Inovação Empresarial, no âmbito do PRR, são exemplos concretos de instrumentos que têm procurado consolidar a cooperação entre universidades, centros de investigação, empresas e startups através de projetos que se esperam vir a ter forte impacto económico e social. Por exemplo, os CoLABs têm promovido a criação de estruturas organizacionais ágeis e orientadas para áreas estratégicas como: o digital na saúde, a transição energética ou a sustentabilidade agroalimentar, fomentando o desenvolvimento e a retenção de talento científico aplicado. Por outro lado, as Agendas Mobilizadoras têm promovido uma dinâmica de cocriação de produtos entre empresas, startups, centros de investigação e instituições públicas, aproximando a investigação das necessidades da indústria e das prioridades de política pública.
Contudo, persistem restrições estruturais que importa entender e mitigar. A cultura de colaboração entre esses atores é ainda casuística e dependente das lideranças individuais envolvidas, faltando mecanismos mais previsíveis e sistemáticos para essa articulação. A excessiva fragmentação institucional, a baixa interoperabilidade entre sistemas de gestão da AP, a burocracia na fase de candidaturas e nos processos de avaliação e controlo dos projetos, baixo nível de capital de risco, ou a reduzida previsibilidade e continuidade de programas de incentivo à investigação e à inovação constituem dificuldades conhecidas à consolidação dessas sinergias.
Para que Portugal possa afirmar-se como referência europeia nesta matéria é essencial assegurar a previsibilidade e o reforço das políticas públicas em ciência e inovação. Por outro lado, deve-se promover a realização de percursos profissionais mais dinâmicos, incentivando, por exemplo, maior mobilidade e interação de profissionais entre academia, meio empresarial e a administração pública. (Um bom exemplo nessa direção é o programa de bolsas de doutoramento em ambiente não académico lançado em 2025 pela FCT.) É também importante reforçar os mecanismos de avaliação do impacto destas colaborações (nacionais e internacionais), garantindo que os resultados são traduzidos em valor económico, social e estratégico para o país. Só com uma abordagem mais integrada, estável e orientada para resultados será possível transformar o conhecimento em valor económico e social de forma mais competitiva e sustentável.
“Só com uma abordagem mais integrada, estável e orientada para resultados será possível transformar o conhecimento em valor económico e social de forma mais competitiva e sustentável.”
O talento português é amplamente reconhecido, mas nem sempre plenamente aproveitado no seu país de origem ou na Europa. Que estratégias podem fortalecer o impacto e a retenção da inovação feita em Portugal?
Como é reconhecido, Portugal tem tido uma importante capacidade de formar talento qualificado, em particular nas áreas das ciências, saúde, engenharias e tecnologias digitais. No entanto, continua a enfrentar desafios relacionados com a valorização, retenção e mobilização desse talento para gerar inovação com impacto duradouro no país. Reforçar essa capacidade exige uma abordagem integrada e multidimensional que considere vários desafios, tais como a melhoria das condições de vida dos mais jovens, a sua valorização profissional, ambiente de inovação competitivo e mobilidade qualificada.
Por um lado, é necessário responder aos constrangimentos estruturais que têm afetado a qualidade de vida dos nossos jovens, em particular o acesso a habitação a preço moderado, nomeadamente nas zonas urbanas com maior proximidade aos centros de investigação e de maior desenvolvimento tecnológico. É também necessário melhorar as condições das carreiras profissionais, garantindo maior estabilidade, remuneração mais competitiva e perspetivas claras de progressão profissional.
Por outro lado, importa consolidar um ecossistema de inovação atrativo, com maior investimento público e privado em I&D, incentivos fiscais à inovação e um mercado de capital de risco mais efetivo. Como refiro anteriormente, a ligação entre universidades, centros de I&D e empresas deve ser intensificada, promovendo carreiras híbridas e projetos colaborativos de médio e longo prazo.
A atração e retenção de talento internacional deve ser mais ágil. Apesar da reconhecida segurança e qualidade de vida de Portugal, é importante simplificar e reduzir a burocracia dos mecanismos de acolhimento e de integração de profissionais estrangeiros altamente qualificados. Por exemplo, importa ativar as redes de portugueses no estrangeiro, promovendo a circulação do talento e a transferência do seu conhecimento. Com políticas consistentes nestas áreas Portugal pode, não só reter talento, mas também posicionar-se como um polo atrativo de experimentação e de inovação no espaço europeu.
Que papel podem (estão a) ter as tecnologias emergentes (como a IA generativa) na modernização contínua do Estado e na promoção de uma relação cada vez mais próxima, eficiente e transparente entre cidadãos e instituições públicas?
as tecnologias emergentes (como a IA generativa, computação em nuvem, Web3, automação inteligente ou a Internet das coisas) desempenham um papel decisivo na sociedade e também na modernização do Estado, contribuindo para uma relação mais próxima, eficiente e transparente entre os cidadãos e as instituições públicas. Estas tecnologias permitem automatizar processos, prever necessidades, personalizar serviços, ou reforçar a transparência e confiança nas decisões públicas.
Em Portugal, a “Estratégia Digital Nacional 2030” (EDN), publicada em dezembro de 2024, define a transformação digital da AP como uma das suas quatro dimensões e, entre outros objetivos, destaca a ambição de oferecer serviços públicos digitais simples, inclusivos e personalizados, com enfoque na interoperabilidade e na integração destas tecnologias (ver caixa destaque).
Várias das ações concretas associadas a essas iniciativas são conduzidas pela AMA e incluem por exemplo: o portal GOV.PT, plataforma que centraliza o acesso aos serviços públicos digitais; a app móvel GOV.PT, que permite acesso a diversos serviços públicos, incluindo a Chave Móvel Digital, a visualização e gestão de documentos de identificação, e (num futuro próximo) a realização de serviços online; e o reforço do programa Simplex, com inúmeras medidas de desmaterialização de processos e simplificação administrativa. Todavia, e apesar deste progresso, persistem desafios que serão endereçados ao longo dos próximos anos, tais como: as competências digitais dos trabalhadores da AP; a integração e partilha transversal de dados entre diferentes entidades da AP; legislação e enquadramento institucional para regulamentar a utilização da IA, garantindo o seu uso responsável; gestão do risco e reforço da resiliência e cibersegurança das infraestruturas críticas do país.
Por fim, quero sublinhar que o processo de modernização da AP não é apenas um problema de adoção de tecnologias, mas principalmente um processo de transformação organizacional e cultural. Requer liderança política, investimentos continuados, foco no cidadão e nas empresas, e uma visão integrada para que a inovação digital possa contribuir efetivamente para uma sociedade mais próspera, inclusiva e participativa.
“O processo de modernização da Administração Pública não é apenas um problema de adoção de tecnologias, mas principalmente um processo de transformação organizacional e cultural.”
Portugal tem condições para liderar (ou influenciar de forma relevante) o desenvolvimento de soluções tecnológicas com impacto europeu? Que áreas ou domínios destaca para consolidarmos essa ambição?
Portugal reúne algumas condições estruturais, sociais e humanas que o colocam numa posição de poder contribuir para o desenvolvimento de soluções tecnológicas com impacto internacional. De facto, Portugal dispõe de infraestruturas de telecomunicações sólidas com uma boa cobertura do território, é ponto de passagem e de amarração de cabos submarinos internacionais que são essenciais para a comunicação global de dados e a conectividade digital, dispõe de um ecossistema de inovação flexível, e dispõe de pessoas com talento reconhecido internacionalmente, sobretudo nas áreas das ciências, engenharias e tecnologias digitais.
Estas capacidades são reforçadas pela estratégia nacional alinhada com as prioridades do programa político da UE “Década Digital 2030”, nomeadamente através da “Estratégia Digital Nacional” (EDN) e do seu “Plano de Ação 2025-2026”, aprovado em dezembro de 2024. Alguns dos domínios com potencial de maior desenvolvimento estratégico poderão ser: as tecnologias de dados e de IA; as ciências e tecnologias do mar e energias renováveis, áreas onde Portugal combina conhecimento científico com a sua situação geográfica privilegiada; a cibersegurança e soberania digital, essenciais para a autonomia estratégica da UE; o GovTech e a modernização da administração pública digital, onde o país apresenta soluções inovadoras; ou as tecnologias digitais para a área da saúde e do envelhecimento ativo.
Contudo, como refiro acima, para consolidar esta ambição é necessário reforçar as políticas públicas de apoio à inovação; promover o estabelecimento de ecossistemas de colaboração entre academia, empresas e administração pública; reforçar o financiamento de capital de risco; melhorar as condições para retenção e atração de talento qualificado (e.g., incluindo a resolução de desafios estruturais como o acesso à habitação e as questões relacionadas com a demografia e a mobilidade urbana); simplificar a regulamentação que vem da UE, nomeadamente na área do digital e do ambiente; e combater a burocracia do Estado.
“Com visão estratégica e investimentos consistentes, Portugal pode afirmar-se como um espaço de inovação de referência na Europa, contribuindo para uma UE mais digital, resiliente e competitiva.”
Alberto Rodrigues da Silva destaca algumas das iniciativas estratégicas contempladas na “Estratégia Digital Nacional 2030” na dimensão do Estado
#8: Jornada Digital para a Administração Pública, que promove um roteiro comum para a capacitação digital, incluindo formação para os trabalhadores da AP;
#9: Serviços Públicos Mais Digitais e Simples, focada na criação de serviços digitais orientados pelos eventos de vida do cidadão ou de negócio das empresas, apostando na interoperabilidade e na automação inteligente;
#10: Agenda Nacional de Inteligência Artificial, que irá definir as orientações para o desenvolvimento e adoção responsável de IA em Portugal, com forte aplicação na AP;
#11: Agência Nacional para o Digital, iniciativa que deverá definir a instituição coordenadora da transição digital, com competências de gestão, monitorização e apoio à implementação das medidas da digitalização do Estado.
*Visitar https://digital.gov.pt/ para mais informação.


