Tecnologia escrita no feminino
Em 2018, a marca alemã de marcadores Stabilo lançou uma campanha publicitária intitulada “Highlight the Remarkable”, que sublinhava (literalmente, a amarelo fluorescente) algumas mulheres que fizeram história, mas foram esquecidas, minimizadas ou tiveram as suas conquistas atribuídas a colegas homens.
Lise Meitner colaborou com Otto Hahn na descoberta da fissão nuclear; mas quando Hahn recebeu o Prémio Nobel da Química, em 1944, Meitner foi ignorada, pelo seu género e origem judaica. Edith Wilson assumiu o governo dos EUA após o seu marido, o presidente Woodrow Wilson, ter sofrido um derrame que o deixou incapacitado, em 1919; contudo, o seu papel foi amplamente ofuscado e subestimado na época. Phyllis Robinson foi a primeira mulher chefe de redação na agência publicitária DDB e liderou campanhas icónicas como “Think Small” do Volkswagen Beetle. Apesar do seu talento, enfrentou enormes preconceitos no ambiente de trabalho. Tracy Edwards foi a primeira mulher a participar na Whitbread Round the World Race, em 1989. Rejeitada pelos colegas (que a queriam a bordo apenas como cozinheira), formou uma tripulação feminina e terminou em segundo lugar, com o melhor resultado britânico desde 1977. Florence Nightingale lutou contra o descrédito dos médicos homens para conseguir transformar a enfermagem numa profissão respeitada no século XIX. Bertha Benz fez a primeira viagem de automóvel de longa distância (106 km), em 1888 e sem autorização do seu marido Karl. Apesar de ter comprovado a viabilidade do automóvel e tornado o negócio do marido um sucesso mundial, poucos conhecem a sua façanha.
Isto porque, historicamente, as mulheres viveram subjugadas pela sua condição física, sendo vistas como mais fracas e relegadas ao papel de procriadoras. Esta visão limitou a valorização de outras competências e contribuições, quer intelectuais quer emocionais, das mulheres. Muitas vezes, o seu único reconhecimento vinha de serem esposas, filhas ou amantes de homens influentes; religiosas intelectuais movidas por vocações aprovadas pela Igreja; princesas ou rainhas com poder político e económico. Caso contrário, corriam o risco de ser rotuladas como loucas, bruxas ou prostitutas, como veremos ao longo deste artigo.
Ao destacar estas mulheres, a campanha da Stabilo procurou apresentar uma nova versão dos factos, uma em que as perspetivas, ideias, biografias(1) e conquistas femininas são igualmente conhecidas e valorizadas… mesmo que seja com décadas, ou mesmo séculos, de atraso. Ao explorar este “Lado B” da história (um conceito que ficou conhecido como “Herstory”(2), por oposição a “History”) percebemos que, tal como em outras áreas, a tecnologia também tem uma história feminina paralela com ainda muitos capítulos por revelar ao grande público.
Desafiaram normas sociais, muitas sujeitaram-se a escárnio e castigos, quando não mortes cruéis, mas deixaram um legado que moldou diferentes indústrias – século após século, geração após geração – abrindo caminho às mulheres que continuam a inovar e liderar hoje no campo tecnológico, especialmente nas TI, como exemplificado pela realidade vivida na Quidgest.
CRISTINA MARINHAS
CEO da Quidgest
O potencial das mulheres no campo tecnológico é imenso, mas continua a ser inexplorado
Como CEO de uma empresa tecnológica, reconheço que faço parte de uma minoria de mulheres que ocupam cargos de liderança em setores tradicionalmente “masculinos” – na UE, as mulheres ocupam apenas 8% dos cargos de CEO, e em Portugal o número cai para 6%. Isto porque as barreiras enfrentadas por elas são ainda muitas: preconceitos, estereótipos, assédio, falta de incentivo na formação e de representatividade, diferenças de salário, maiores responsabilidades na assistência familiar, e a própria autoexigência feminina. No entanto, iniciativas de empresas comprometidas com a diversidade, como a Quidgest, que promove a inclusão feminina através de modelos de trabalho flexíveis, formação gratuita em desenvolvimento de software e competências digitais e possui uma força de trabalho diversa, composta por 43% de mulheres, são alguns dos caminhos para superar estas barreiras.
O potencial das mulheres no campo tecnológico é imenso. Mas continua a ser inexplorado e há toda uma fileira de gerações de meninas e mulheres a quem inspirar, motivar e apoiar. O que estamos, cada um de nós, e a partir do lugar que ocupamos nas nossas famílias, empresas, comunidades, escolas e universidades, a fazer para que isso aconteça? Vale a pena refletir sobre isto, não apenas no Dia Internacional da Mulher, mas sim todos os dias.
PRÉ-HISTÓRIA (2,5 milhões de anos atrás – 3500 a.C.): AGRICULTORAS, TECELÃS, CURANDEIRAS E ARTISTAS
A Pré-História pode ser organizada em períodos que abrangem milhares de anos e uma vasta gama de culturas com diferentes estruturas sociais. Embora a documentação específica seja escassa, devido à ausência de registos escritos, as evidências arqueológicas e etnográficas mostram que as mulheres desempenharam papéis fundamentais nas comunidades e contribuíam para o desenvolvimento das tecnologias essenciais de cada época. Eram responsáveis pela recolha de plantas, raízes e sementes, um conhecimento que levou ao início da agricultura no Neolítico. Além disso, dominavam a tecelagem e a produção de vestuário (utilizando ferramentas como fusos e teares rudimentares) e estavam envolvidas na produção de cerâmica, indispensável para o armazenamento e cozimento de alimentos.
As mulheres também tinham um profundo conhecimento de plantas medicinais e práticas de cura nas comunidades. Participavam na criação de abrigos e contribuíam com técnicas e materiais de construção. Estudos arqueológicos sugerem que podem ter sido autoras de algumas das primeiras artes rupestres, com o objetivo de transmitir tradições culturais e espirituais.
ELIZA TARZIA
Director of Marketing & Growth na BRIDGE IN e VP na 351 Portuguese Startup Association
O principal desafio profissional enfrentado pelas mulheres é o ‘pink washing’
Muitas organizações orgulham-se de ter uma força de trabalho diversificada, com mulheres a representar 50% ou mais dos empregados. No entanto, a verdadeira diversidade não se limita a preencher quotas. Muitas vezes, as mulheres estão sub-representadas em posições de liderança, ocupando predominantemente funções de apoio. Para que a diversidade seja autêntica, é necessário que as mulheres tenham representação significativa em todos os níveis hierárquicos, especialmente nos postos de decisão. Como Co-fundadora e diretora da minha agência criativa, houve diversas situações em que, ao entrar numa reunião com um colaborador do sexo masculino, os potenciais clientes automaticamente dirigiam a conversa a ele, presumindo que ele era o chefe e eu apenas uma assistente. Esta suposição errónea reflete os estereótipos de género profundamente enraizados que ainda prevalecem, subestimando a capacidade e a posição das mulheres no ambiente empresarial.
Sobre mulheres que me inspiram profundamente, não consigo identificar apenas uma, pois há inúmeras mulheres extraordinárias em diversos campos. Nos negócios, Luisa Spagnoli (chocolates Baci). Na ciência, figuras como Margherita Hack (astrofísica) são icónicas. No desporto, atletas como Serena Williams, no ténis, e Megan Rapinoe, no futebol, são exemplos de excelência e ativismo. Uma última nota vai para a Oriana Fallaci, conhecida pelo seu jornalismo investigativo. Estas mulheres mostram que as barreiras podem ser superadas e que a luta pela igualdade é contínua e vital.
ANTIGUIDADE (3000 a.C. – 476 d.C.): FILÓSOFAS, ASTRÓNOMAS, POLÍTICAS E MATEMÁTICAS
A Antiguidade é o período das grandes civilizações urbanas, como a egípcia, a grega ou a romana. A escrita, surgida em 3500 a.C., na Mesopotâmia, permitiu o registo de eventos históricos, leis, literatura e avanços técnicos, o que transformou profundamente a sociedade e permitiu o desenvolvimento de culturas com influências que perduram até hoje.
Na Babilónia, por volta de 1200 a.C., a sociedade estava estruturada por leis e práticas culturais avançadas. As mulheres tinham alguns direitos (possuir propriedades e receber heranças, como joias e dinheiro, para a sua independência financeira), embora supervisionadas por homens (pais, maridos ou filhos). A vida doméstica era central para as mulheres, os casamentos eram geralmente arranjados e a sua educação focada em práticas do dia a dia. No entanto, algumas nobres conseguiam adquirir conhecimentos em áreas como medicina e perfumaria. As mulheres também podiam servir como sacerdotisas em templos – um posto de influência e respeito dentro da comunidade.
Tapputi-Belatekallim destacou-se como perfumista da corte real, ao utilizar ingredientes, técnicas de destilação e filtragem inovadores para criar fragrâncias à base de flores, óleos e ervas. O seu trabalho pioneiro (realizado na cozinha do palácio, que ela transformou em laboratório) estabeleceu processos de seleção, padronização e produção em série que, ao longo do tempo, foram aperfeiçoados. Hoje, todos estes processos são essenciais para fabricar medicamentos, perfumes, cosméticos e outros componentes de diversas indústrias, incluindo a tecnológica, para garantir qualidade, eficiência e uniformidade na produção.
Ao avançarmos para a Grécia Antiga, deparamo-nos com uma sociedade na qual a cidadania era exclusiva dos homens. Só eles podiam votar ou ocupar cargos públicos. A educação das mulheres estava limitada às tarefas domésticas, ficando excluídas da vida cultural e das discussões políticas. Imagine: as mulheres estavam proibidas de participar e até de assistir aos Jogos Olímpicos!
Mas é neste tempo que encontramos Aspásia de Mileto. Originária de Mileto, uma cidade jónica com uma cultura mais aberta (meninos e meninas tinham direito a educação), Aspásia conseguiu destacar-se na Atenas do século V a.C. como educadora e participante ativa em discussões filosóficas e políticas. A sua relação com Péricles proporcionou-lhe acesso a círculos de poder e intelectuais. Também dirigia uma escola de filosofia e retórica, onde ensinava e debatia com figuras como Sócrates. Embora tenha sido alvo de críticas e sátiras(3), e muitas vezes acusada de usar a sua beleza e inteligência para manipular os homens devido ao seu papel incomum, Aspásia é lembrada pelo seu pensamento crítico. Defendia a educação das mulheres, encorajando-as a procurar participação ativa na vida intelectual e política. Uma missão que continua por cumprir, vinte e cinco séculos depois.
Aglaonice, que viveu no século II a.C., ficou conhecida como “a bruxa de Tessália”, por prever eclipses lunares com uma precisão que intrigava os seus contemporâneos mais eruditos. Embora sacerdotisa, só conseguiu estudar astronomia porque o seu pai autorizou. Foi uma das primeiras mulheres a aplicar métodos científicos e princípios matemáticos para entender o universo e influenciou as futuras gerações de cientistas responsáveis por descobertas que hoje se aplicam em sistemas de navegação por satélite, previsão meteorológica ou exploração espacial.
Já na Roma antiga, Agripina, mãe do imperador Nero, teve uma influência significativa durante o século I d.C. Embora não tenha sido engenheira, a sua posição permitiu-lhe patrocinar e apoiar diversos projetos de engenharia e construção, bem como melhorias infraestruturais e tecnológicas essenciais para o desenvolvimento e a qualidade de vida em Roma (Porto de Ostia, aquedutos Aqua Claudia e Anio Novus, estradas e edifícios públicos). Cada vez mais ressentido com a influência da sua mãe, Nero orquestrou o seu assassinato em 59 d.C.
Fabiola foi outra mulher considerada tecnologicamente inovadora, no contexto dos cuidados médicos na Roma do século IV d.C. Fabiola era uma patrícia romana que ao ficar viúva, decidiu converter-se ao Cristianismo e fundar um dos primeiros hospitais públicos em Roma (antes disso, os doentes recebiam tratamento em casa ou nos templos de cura). Curiosa pelas tecnologias, adotou o uso de instrumentos cirúrgicos (bisturis, pinças, cauterizadores feitos de bronze e ferro), difundiu novas práticas de higiene para prevenir infeções com aplicação de plantas medicinais nos tratamentos. Por ter sido canonizada pela Igreja Católica e “transformada” em Santa Fabiola, o seu trabalho influenciou a medicina na Europa medieval.
No Egito do século IV d.C., as mulheres viviam numa sociedade de transição, marcada pela influência romana e a presença crescente do cristianismo. Apesar das restrições patriarcais, desempenhavam papéis importantes na vida religiosa e familiar, e podiam trabalhar com tecelagem, artesanato e comércio. Esta adaptabilidade refletia uma sociedade em evolução, onde as mulheres encontraram maneiras de exercer a sua influência – exemplo disso foi o famoso “Templo de Ísis”, que funcionava como um centro cultural onde as mulheres podiam aprofundar conhecimentos religiosos e culturais.
Foi aqui que Hipátia de Alexandria se destacou como filósofa, astrónoma e matemática. Com acesso ao conhecimento por ser filha do matemático Teão, Hipátia desafiou as normas sociais e dedicou-se ao ensino de álgebra e geometria, melhorou o astrolábio (uma calculadora astronómica) e o hidroscópio (aparelho para medir líquidos) e superou muitos filósofos da sua época. A sua ousadia (e o facto de ser pagã) custou-lhe a vida às mãos de fundamentalistas religiosos. Foi espancada, esquartejada e queimada em praça pública. Mas a sua luta pela liberdade intelectual e a aprendizagem contínua ressoa ainda hoje na luta pela igualdade no acesso à educação e às profissões STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática).
FILIPA COSTA
Health and Science Consultant na Quidgest
A Quidgest promove ambientes inclusivos e oportunidades iguais entre colaboradores
A presença de mulheres na tecnologia traz perspetivas variadas que fomentam a inovação e a criatividade, o que resulta em soluções mais abrangentes e eficazes. Histórias de pioneiras como a de Ada Lovelace mostram como as mulheres contribuíram para a evolução da tecnologia ao longo do tempo. Além disso, a diversidade de género equilibra as equipas, melhora a usabilidade dos produtos e cria ambientes de trabalho mais saudáveis. Empresas como a Quidgest também promovem ambientes inclusivos e oportunidades iguais entre colaboradores, além de redes de contacto e práticas de equilíbrio pessoal-profissional.
Na minha perspetiva, todas as pessoas à nossa volta são fontes de inspiração. No entanto, a minha avó é uma das minhas maiores referências. Ela viveu numa época em que a taxa de analfabetismo era muito elevada, sobretudo entre as mulheres, que comummente eram apenas donas de casa; mas isso não a definiu. Com muita determinação, criou uma cadeia de pastelarias e fábricas. A sua coragem e resiliência são um exemplo para mim no dia a dia.
IDADE MÉDIA (Séculos V-XV): INVESTIGADORAS, MÉDICAS E DIFUSORAS DE CONHECIMENTO
Durante a Idade Média europeia, só as mulheres nobres ou aristocratas recebiam formação em música, bordado, leitura ou escrita. O casamento era uma ferramenta política para fortalecer alianças. A alternativa era uma vida monástica, que trazia segurança e algumas oportunidades educacionais em áreas como teologia, música e medicina. A realidade das camponesas continuava centrada no trabalho doméstico e agrícola, bem como no cuidado da casa e dos filhos. O casamento era essencial para a sobrevivência económica das mais pobres.
No século XII, Hildegarda de Bingen destacou-se como uma polímata extraordinária. Por viver num convento desde os 8 anos, teve acesso a educação e mentoria não disponíveis a outras mulheres da sua era. Foi compositora e escreveu tratados sobre medicina e botânica – “Physica” e “Causae et Curae” documentavam animais, plantas, propriedades e usos terapêuticos, organizados de forma sistemática para poderem ser facilmente consultados e utilizados. Esta abordagem meticulosa à documentação é precursora das técnicas e práticas de gestão de informação que conhecemos hoje.
Trótula de Salerno, que viveu nos séculos XI e XII, foi também uma pioneira no campo da saúde feminina. Por influência do marido, foi uma das poucas mulheres a estudar na Schola Medica Salernitana (conhecida como a primeira universidade europeia laica). Teve, por isso, acesso a conhecimento médico que integrava tradições árabes, gregas e latinas, e escreveu tratados inovadores sobre questões ginecológicas e obstétricas. Na documentação deixada, estão descritos técnicas e instrumentos para tratar de problemas menstruais, cancerígenos e complicações no parto (uso do speculum, de opiáceos para controlo da dor de parto e de novas técnicas de sutura), além de métodos de diagnóstico avançados. O seu trabalho de investigação, demasiado pioneiro para uma época em que dominavam os ideais do patriarcado e da Inquisição, foi várias vezes plagiado e atribuído ao seu marido. Chegou mesmo a existir uma corrente que afirmava que Trótula nunca existiu e que, a existir, era impossível ter sido autora de tais tratados – pois era uma mulher.
Do outro lado do mundo, na China, entre os séculos VII e VIII, a imperatriz Wu Zetian promoveu o desenvolvimento da impressão em madeira. Sob o seu reinado, esta revolução tecnológica permitiu a reprodução de textos em larga escala e democratizou o acesso à informação. Um exemplo notável foi a impressão do “Grande Dharani Sutra”, que ajudou a disseminar o budismo – e acalmou os ânimos dos intelectuais da época, que viam a subida ao trono de uma mulher como uma violação das normas do confucionismo. No século XV, seria Gutenberg a ficar na história por repetir o feito com a invenção da prensa móvel e a impressão da Bíblia em papel.
Hoje, a democratização do conhecimento inspirada por mulheres como a imperatriz Wu Zetian pode ser encontrada em programas de educação, formação e mentoria, workshops e bibliotecas digitais que garantem que mulheres de diversas regiões possam aprender sem barreiras físicas ou financeiras.
A Igreja Católica tinha uma influência profunda que moldava as perceções sobre o papel da mulher medieval, frequentemente vista através do prisma de figuras bíblicas como Eva e Maria, opostos de tentação/mal ou pureza/bem. Esta rigidez de género deu força a figuras como Joana d’Arc. Conhecida como a Donzela de Orleães, desafiou as expectativas do seu tempo. Aos 17 anos, alegando receber visões divinas, liderou o exército francês contra os ingleses na Batalha de Orleães, em 1429, durante a Guerra dos Cem Anos. Mesmo tendo sido aceite e respeitada como comandante militar, houve um preço alto a pagar pela ousadia: Joana d’Arc morreu queimada na fogueira, acusada de heresia, bruxaria e de vestir roupas masculinas(4), entre outros crimes da época.
SÓNIA FERNANDES
Software Developer e Genio Trainer na Quidgest
O maior desafio é conquistar um lugar e inspirar as gerações seguintes a manter esse lugar
Os desafios lançados às mulheres são sempre diferentes. No início da carreira, há uma sensação de que não és ouvida, e quando és, a tua opinião é deixada para segundo ou terceiro plano. As tarefas que te propõem são sempre menos técnicas e mais humanas (falar com clientes, análises, acolhimento de pessoas). Uma mulher também precisa de trabalhar mais horas, precisa de ‘ganhar’ esse lugar. Depois de seres mãe, o desafio cresce, não só porque queres mostrar a todos que ‘uma mulher e mãe’ pode ter carreira, mas porque queres provar isso a ti própria. É nesta altura que abraças mais tarefas no trabalho e na família (educação, assistência na doença, preparação de refeições). Não podemos também esquecer a nossa história – não foi assim há tanto tempo que começámos a votar (1931 em Portugal). Por isso, o maior desafio é conquistar um lugar e inspirar as gerações seguintes a manter esse lugar.
Na área tecnológica, encontrar fontes de inspiração não é difícil. Através da minha professora de TI no secundário, conheci Jean Bartik, uma das seis programadoras do ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer), o primeiro computador digital eletrónico, desenvolvido durante a Segunda Guerra Mundial para calcular trajetórias balísticas e ajudar as tropas aliadas. A sua paixão pela tecnologia, em ambiente masculino onde foi desvalorizada e esquecida (o nome das seis programadoras nem sequer foi mencionado no dia da apresentação do ENIAC, em 1945), faz dela um exemplo de resiliência e superação até hoje.
IDADE MODERNA (Séculos XVI-XVIII): TRADUTORAS E VISONÁRIAS
A chegada da Idade Moderna e de marcos como o Renascimento, a Reforma Protestante ou o Iluminismo incentivaram a alfabetização feminina. Por um lado, a valorização do conhecimento e do humanismo levou à criação de academias e escolas que aceitavam mulheres, sobretudo nobres, com interesse por artes, ciência, literatura e cultura clássica (são deste tempo Isabella d’Este, patrona das artes que financiou Leonardo da Vinci e Rafael; e a pintora italiana Artemisia Gentileschi). O luteranismo e o calvinismo promoveram ainda a leitura da Bíblia, o que levou a um aumento da alfabetização para permitir que todos os crentes, incluindo as mulheres, pudessem ler as Escrituras.
O Iluminismo e a Revolução Francesa deram força aos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Nascia a “Encyclopédie”, editada por Denis Diderot e Jean le Rond d’Alembert, e emergiam as bases para o movimento feminista em livros como “Déclaration des Droits de la Femme et de la Citoyenne” (Olympe de Gouges, 1781) e “A Vindication of the Rights of Woman” (Mary Wollstonecraft, 1792).
Apesar destas mudanças, a sociedade permaneceu predominantemente patriarcal e a maioria das mulheres continuava a trabalhar em casa e na agricultura, em negócios familiares nas cidades ou como empregadas em lares de famílias mais abastadas. O convento continuou a servir para fugir das restrições do casamento e encontrar alguma educação e independência (caso das freiras Juana Inés de la Cruz, no México, que se destacou como poetisa; Teresa de Ávila, em Espanha, que escreveu sobre espiritualidade e oração; ou Arcangela Tarabotti, em Itália, que criticou veementemente a prática de forçar mulheres a entrar em conventos em “Paternal Tyranny”, inspirada na sua própria história de vida).
No século XVIII, Émilie du Châtelet, uma aristocrata francesa da época, fez contribuições significativas para a física e a matemática. A sua relação amorosa e intelectual com Voltaire contribuiu para o avanço académico de ambos. Traduziu do latim para o francês a obra “Principia Mathematica”, de Isaac Newton, e juntou comentários que ajudaram a disseminar as ideias de Newton na Europa, facilitando a compreensão das leis do movimento e da gravidade. Estas leis são fundamentais para as áreas de engenharia de estruturas, software ou aplicações de realidade aumentada e virtual – e permitem, hoje, a existência de carros com airbags ou a simulação da trajetória de foguetões.
Nicole-Reine Lepaute, aproveitou estes ventos de mudança e aprofundou a sua paixão pela tecnologia que teve ao seu alcance. Casada com um relojoeiro, desenvolveu fortes competências de precisão, na medição do tempo associada à astronomia, o que lhe permitiu participar na construção de instrumentos astronómicos e no desenvolvimento de cálculos exatos sobre as posições dos corpos celestes. Nicole ajudou a prever o regresso do cometa Halley para o dia 13 de abril de 1759. O cometa chegou a 13 de março de 1759.
Embora a França fosse o centro de inovação durante o Iluminismo, e talvez o país mais vanguardista para as mulheres (legalizou o divórcio pela primeira vez em 1792!), outras regiões do mundo também testemunharam avanços significativos.
CATARINA FARINHA
AI Research Manager @ Unbabel Labs
Faltam mais mulheres em papéis de liderança
Ter mulheres ativamente envolvidas na tecnologia traz vários benefícios, mas destaco: a diversidade de pensamento que contribui para maior inovação, trazendo perspetivas e experiências diferentes; e um ambiente com maior empatia e sensibilidade. Acredito vivamente no poder da diversidade. Infelizmente, nas áreas STEM a proporção entre homens e mulheres ainda não é equilibrada. Há várias iniciativas que estão a trabalhar para diminuir esse gap, incentivando meninas a escolherem, desde cedo, áreas de estudo tecnológicas, mas faltam mais mulheres em papéis de liderança e maiores incentivos para uma progressão de carreira igualmente justa (por exemplo, na questão da gravidez/maternidade).
Não consigo destacar nenhuma mulher em particular, mas destaco grupos: o Portuguese Women in Tech (liderado pela Liliana Castro e pela Inês Santos Silva), as minhas colegas e amigas do Portuguese Executive Women in Tech (o grupo em que estou é liderado pela Magda Cocco), e as minhas amigas do Data Science for Social Good Portugal.”
IDADE CONTEMPORÂNEA (Séculos XIX-XXI): A PRIMEIRA PROGRAMADORA
Durante o século XIX, as mulheres viviam sob os padrões da era vitoriana, voltados para a pureza, a domesticidade e a submissão. No entanto, com a Revolução Industrial e a necessidade de mais mão de obra, muitas mulheres passaram a trabalhar fora de casa – em indústrias têxteis, minas e fábricas. As condições eram insalubres, precárias e perigosas, provocadas inclusivamente pela roupa feminina da altura, que se enroscava na maquinaria e incendiava facilmente.
Movimentos feministas começaram a surgir, defendendo direitos ao voto, à educação e à melhoria das condições de trabalho. Várias greves e motins, como a Greve das Costureiras de Nova York, em 1857, deram origem à celebração que conhecemos hoje do dia 1 de Maio, Dia Internacional do Trabalhador. Curiosidade: em 1867, o leite em pó da Nestlé ficou comercialmente disponível para mães que não conseguiam amamentar os filhos. Mas invenções como esta serviram para muito mais do que reduzir o drama da mortalidade infantil – ajudaram as mães a prolongar o tempo fora de casa para garantirem a independência financeira e um papel mais ativo na sociedade.
Ada Lovelace é frequentemente considerada a primeira programadora da história. Filha de mãe matemática e pai poeta (Lord Byron), recebeu mentoria de Charles Babbage, o criador da Máquina Analítica(5) – o primeiro modelo de computador programável, mas que o seu criador nunca chegou a ver completamente construído, devido às limitações tecnológicas da época. A máquina era movida a vapor, funcionava com cartões perfurados para entrada de dados e instruções e incluía uma unidade de processamento central e uma memória expansível, caraterísticas que persistem nos computadores modernos.
Ada Lovelace não só compreendeu o design complexo da Máquina Analítica, como escreveu o primeiro algoritmo destinado a ser processado pela máquina e vislumbrou um futuro onde este tipo de máquinas, além de calcular, poderiam executar qualquer comando ou ação que fosse possível de expressar através de lógica, símbolos e números. Ada Lovelace acreditava que as máquinas poderiam criar música, arte e realizar tarefas complexas, processar grandes quantidades de dados e aprender padrões – antecipando assim grande parte dos conceitos fundamentais da computação e da Inteligência Artificial. Daí que seja intrigante que, com tantos “pais” da Inteligência Artificial reconhecidos (Alan Turing, John McCarthy, Marvin Minsky, Allen Newell, Herbert A. Simon), Lovelace permaneça uma figura secundária. Sobretudo porque foram as notas de Lovelace sobre a Máquina Analítica que Alan Turing usou como forma de inspiração para o seu trabalho no desenvolvimento dos primeiros computadores digitais programáveis do mundo.
SABRINA RODRIGUEZ
Software Engineer na Quidgest
As mulheres trazem competências essenciais para o setor tecnológico
O setor tecnológico tem tido tradicionalmente uma forte presença masculina – mas encontramos na história mulheres que desenvolveram as bases de tecnologias essenciais (Wi-Fi), como Hedy Lamarr. Embora a presença de mulheres tenha aumentado, muitas ainda duvidam das suas capacidades, o que intensifica a pressão laboral e os comportamentos perfecionistas. A escassez de mulheres em cargos de liderança também reduz os modelos a seguir para as jovens. No entanto, o setor oferece vantagens como a flexibilidade laboral, que ajuda a equilibrar responsabilidades pessoais e profissionais. Empresas como a Quidgest promovem também oportunidades de formação, desenvolvimento profissional e políticas de diversidade e inclusão que criam um ambiente de trabalho mais equitativo e respeitoso.
Um modelo de inspiração? A minha mãe! Apesar de ter sido sempre uma pessoa doente e de me ter criado sozinha, sempre soube enfrentar as dificuldades. Ensinou-me que as limitações são autoimpostas e que se me proponho a fazer algo e me foco nisso, sou capaz de alcançar qualquer coisa. Só preciso de confiar em mim.
CRIPTÓGRAFAS, INVENTORAS E ENGENHEIRAS ESPACIAIS
No virar do século XIX para o XX – e após a invenção do telefone em 1876 e da máquina de escrever em 1868 – as mulheres tiveram mais contacto com novas tecnologias. Passaram a ser telefonistas, operadoras de telégrafo, mecanógrafas e dactilógrafas, o que deu origem à expansão dos serviços de informação e preparou o terreno para a sua participação nas Guerras Mundiais, onde assumiram papéis técnicos e de engenharia (tradicionalmente masculinos) em fábricas de munições, estaleiros, aviação, transportes públicos, comunicações e outras indústrias essenciais.
Joan Clarke foi uma das mais brilhantes criptógrafas do seu tempo. No Bletchley Park, o centro secreto de decifração de códigos do Reino Unido, Joan ajudou a decifrar os códigos da máquina Enigma, utilizada pelos nazis na Segunda Guerra Mundial. Apesar de enfrentar discriminação de género e ser frequentemente subestimada pelos colegas masculinos, encontrou um homem que reconheceu o seu talento e fez questão de a incluir nas discussões mais importantes: Alan Turing. Um dos momentos mais emocionantes da carreira de Clarke foi quando ajudou a decifrar uma mensagem que revelou os planos da Operação Nordlicht (um ataque planeado pela Alemanha nazi contra a União Soviética, em 1942). Esta descoberta permitiu que aos aliados derrotar o inimigo e mudar o curso da guerra. Hoje, técnicas de criptografia como as desenvolvidas por Clarke são aplicadas como base da segurança e da proteção de informação em comunicações, transações financeiras ou defesa militar.
As guerras também impulsionaram mudanças na moda e no estilo de vida feminino, com roupas mais práticas (fim dos espartilhos e das saias compridas, Coco Chanel popularizou o uso de calças para mulheres) e cabelos mais curtos (que começaram logo na década de 1920, com o estilo à la garçonne). Com a necessidade do racionamento, surgiram também os alimentos enlatados e congelados, muito populares nas décadas seguintes, quando as mulheres começaram a perfazer grande parte da força de trabalho e precisaram de soluções rápidas e práticas para as refeições familiares. Em 1942, “Rosie the Riveter” tornou-se um ícone cultural e símbolo de todas as mulheres que arregaçaram as mangas – e fizeram da necessidade de mão de obra para o esforço de guerra dos seus países uma oportunidade histórica que lhes abriu a porta a uma emancipação nunca antes experimentada.
Imortalizada pela sua beleza em Hollywood(6), Hedi Lamarr foi (além de atriz) uma brilhante inventora no campo das comunicações militares, muito devido à influência do seu primeiro marido, um fabricante de munições e armamento. Ao ser judia, fugiu da Áustria (e do marido controlador) para os EUA e foi lá que se dedicou a atuar e a desenvolver, com o compositor George Antheil, a tecnologia que denominaram “salto de frequência” e que permitia que os sinais de rádio “saltassem” entre diferentes frequências para evitar a deteção de sinais de rádio e despistar assim os radares e torpedos nazis durante a Segunda Grande Guerra. Apesar de patenteada em 1942, o Conselho Nacional de Inventores rejeitou a ideia, porque vinha de uma mulher – a tecnologia só foi utilizada em 1962, pelas tropas militares na crise dos mísseis em Cuba. A invenção serviu de base para tecnologias modernas como como o Wi-Fi, o GPS, o Bluetooth e o telemóvel.
Grace Hopper serviu como almirante na Marinha dos EUA, durante a Segunda Guerra Mundial, e trabalhou como programadora no Harvard Mark I, um dos primeiros computadores modernos. A sua contribuição mais famosa foi o desenvolvimento do primeiro compilador de linguagem de programação, uma ferramenta que traduz linguagens de alto nível para comandos que um computador pode executar. Este avanço abriu caminho para a criação da COBOL (Common Business Oriented Language), uma linguagem essencial para o processamento de dados comerciais, utilizada ainda hoje em dia. Esta pioneira da tecnologia também é conhecida por ter popularizado as falhas de software com o termo “bug”. Tudo aconteceu em 1947. Ao trabalhar no Harvard Mark II, a equipa encontrou um problema técnico causado por uma borboleta presa nos circuitos do computador. O inseto foi removido e colado no registo do laboratório com a nota: “First actual case of bug being found”.
Mary Kenneth Keller foi outra mulher importante na tecnologia do século XX. Em 1965, tornou-se a primeira mulher da história a obter um doutoramento em ciências da computação, com a tese “Inferência indutiva de padrões gerados por computador”. Também participou no desenvolvimento da linguagem de programação BASIC (Beginner’s All-purpose Symbolic Instruction Code), que tornou a programação fácil de aprender e usar, especialmente por estudantes ou pessoas que não tinham um forte background em ciências da computação ou matemática avançada. Mary Kenneth Keller fazia parte da ordem das Irmãs da Caridade da Bem-Aventurada Virgem Maria e decidiu dedicar a sua vida à educação. Fundou o departamento de ciências da computação na atual Clarke University, ensinou física e matemática em várias instituições, promoveu a alfabetização tecnológica e a participação das mulheres na tecnologia.
Ainda nos anos 60, Mary Wilkes fez história ao usar o LINC (Laboratory Instrument Computer) na sua própria casa – tornando-se a primeira pessoa no mundo a usar um computador em ambiente doméstico. A sua visão e inovação abriram caminho ao mercado dos computadores pessoais e inspirou gerações futuras a imaginar um mundo onde a tecnologia e o trabalho estão acessíveis a todos a partir de qualquer lugar.
Durante a corrida espacial nos anos XX, várias mulheres desempenharam papéis tecnológicos importantes: Dorothy Vaughan foi a primeira mulher afro-americana supervisora na NASA e Mary Jackson foi a primeira engenheira negra da NASA, que trabalhou ainda para melhorar as oportunidades de carreira de mulheres e outras minorias na agência. Katherine Johnson também fez parte deste grupo de mulheres. Trabalhou na NASA e fez cálculos de trajetória (à mão!) essenciais para o sucesso das missões espaciais Mercury e Apollo (que incluíram o voo de John Glenn, o primeiro americano em órbita, e a chegada do Homem à Lua, em 1969). Vítima de discriminação de género e racial, esperou até aos 97 anos para receber a Medalha Presidencial da Liberdade pelas mãos do presidente Barack Obama, em 2015. Um ano depois, a história de Katherine foi popularizada no filme “Hidden Figures”.
Do lado soviético, Valentina Tereshkova, a primeira mulher a viajar ao espaço, em 1963, também teve um impacto significativo ao inspirar gerações de mulheres, bem como políticas e programas que promovem a inclusão feminina nas ciências espaciais e em outras áreas tecnológicas.
Durante o século XX, mulheres de diferentes partes do mundo desempenharam papéis importantes na luta pela igualdade de direitos, incluindo o direito ao voto, a igualdade salarial, oportunidades educacionais e o controlo da natalidade. O aparecimento da pílula anticoncecional, em 1960, foi um marco na revolução sexual e no movimento de direitos das mulheres; já o nascimento do primeiro bebé de proveta no Reino Unido, em 1978, mostrou como a fertilização in vitro podia permitir às mulheres controlar a maternidade fora dos moldes tradicionais.
No tema dos direitos civis, na Argentina, Evita Perón usou a sua posição como primeira-dama para promover reformas sociais e assegurar o direito ao voto feminino em 1947. Nos EUA, Rosa Parks tornou-se um símbolo do movimento pelos direitos civis ao desafiar as leis de segregação racial (não ceder o lugar a um passageiro branco) num autocarro, em 1955. Na África do Sul, enquanto Nelson Mandela estava preso (desde 1962), Winnie Mandela continuou a luta contra o Apartheid. Em países como a Índia, figuras como Indira Gandhi emergiram como líderes políticas influentes. Em 1978, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU consagra a igualdade de género como direito fundamental.
Os anos 70 continuaram a ser um período de inovação, nomeadamente na indústria dos videojogos, e Carol Shaw foi uma das primeiras mulheres a destacar-se neste campo. Na Atari, programou o “3-D Tic-Tac-Toe”, lançado em 1978. Em 1982, já a trabalhar na Activision, Carol Shaw lançou o “River Raid”. O videojogo foi um sucesso comercial! Ao contrário dos tradicionais videojogos da época (que apresentavam ecrãs fixos), no “River Raid”, o avião mexia-se na vertical, ao longo de um rio contínuo, para disparar nos inimigos e evitar os obstáculos. Esta abordagem inovadora criou uma experiência de jogo mais dinâmica e envolvente e inspirou mais mulheres a abraçarem a indústria dos videojogos, como Roberta Williams (“King’s Quest”), Brenda Romero (“Wizardry”), Kim Swift (“Portal”) e Jade Raymond (“Assassin’s Creed”).
Elizabeth “Jake” Feinler sobressaiu na história da Internet. Entre 1972 e 1989, dirigiu o Network Information Center (NIC), no Stanford Research Institute da Califórnia. O NIC foi uma das primeiras entidades a fornecer recursos e diretórios para a ARPANET, a precursora da Internet moderna. Era responsável por publicar os recursos e diretórios da rede (divididos em páginas brancas e amarelas), ou seja: uma versão embrionária dos motores de busca que conhecemos hoje. Também se deve a Feinler o desenvolvimento do esquema de nomes de domínio que utilizamos hoje para navegação na Internet (.com, .edu, .gov, .net, e muitos outros).
Na década de 1980, o mundo testemunhou grandes transformações tecnológicas e sociais. O surgimento dos computadores pessoais e a expansão da Internet prepararam o terreno para as revoluções tecnológicas atuais. Estas mudanças ocorreram num contexto global de tensões políticas e sociais, que culminaram com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da Guerra Fria. Paralelamente, surgiram movimentos que questionavam as definições tradicionais feministas, exigindo a representação das mulheres de outras minorias (económicas, raciais, etárias, de orientação de género, etc.) sub-representadas na sociedade.
É deste tempo Radia Perlman. A ainda programadora e engenheira na Dell EMC ficou famosa por contribuir para a transformação da infraestrutura das redes de computadores. Em 1985, desenvolveu o Spanning Tree Protocol (STP), um algoritmo essencial que permite a criação de redes locais (LANs) eficientes. Este protocolo estabeleceu as regras básicas do tráfego da Internet que garantem a transmissão fluida dos dados ainda hoje.
SARA ALMEIDA
HR Business Consultant & Project Manager na Quidgest
A cultura organizacional da Quidgest é muito inclusiva e facilita a integração de todas as mulheres
A cultura organizacional da Quidgest é muito inclusiva e facilita a integração de todas as mulheres que aqui trabalham. Infelizmente, sei que esta não é a realidade de todas as mulheres e que muitas sofrem ou já sofreram algum tipo de preconceito que colocou em causa as suas competências. Muitas delas são prejudicadas no acesso a oportunidades de crescimento ou sofrem de desigualdade salarial. O meu conselho é: acreditem nas vossas capacidades e mantenham-se resilientes perante os desafios. Se tiverem numa posição onde vos seja possível influenciar a cultura organizacional, desenvolvam ações de promoção da inclusão e diversidade e formem grupos de apoio.
Sobre figuras femininas inspiradoras, tenho muitas. Mas vou destacar aqui a Reshma Saujani, que Fundou “Girls Who Code” em 2012, com o objetivo de preencher lacunas de género na área da tecnologia. É uma pessoa inspiradora especialmente pela sua coragem e visão de criar oportunidades e suporte para que, desde cedo, as mulheres possam conhecer e seguir os sonhos nas áreas da tecnologia. O seu exemplo mostra como é possível criar um impacto social positivo com dedicação e paixão pelo que se faz.
EMPREENDEDORAS, ATIVISTAS, FILANTROPAS E CEO
No século XXI, o mundo continua a passar por avanços tecnológicos, mudanças sociais e uma crescente luta pela igualdade de género. O novo milénio trouxe consigo a “bolha da Internet”, que, apesar de ter rebentado, favoreceu a transformação digital. O empreendedorismo feminino ganhou destaque e são cada vez mais as mulheres CEO, fundadoras e líderes às frente de empresas com destaque nas diferentes áreas de negócio.
Kimberly Bryant cresceu em Memphis, Tennessee (EUA), e enfrentou desafios como mulher negra na área da engenharia elétrica, um campo predominantemente masculino e branco. Determinada a tornar a tecnologia um setor mais inclusivo, encontrou inspiração ao observar que a filha era uma das poucas meninas negras a participar num campo de verão de programação. Bryant percebeu a falta de representatividade e recursos disponíveis para estas jovens interessadas em tecnologia e decidiu fundar o Black Girls CODE, em 2011. Esta organização sem fins lucrativos proporciona educação em programação e robótica a meninas com idades entre os 7 e os 17 anos. Uma das jovens formadas pelo Black Girls CODE que se destaca atualmente como líder tecnológica é Kyla Guru, fundadora da Bits N’ Bytes Cybersecurity, também uma organização sem fins lucrativos destinada a formar os mais jovens em cibersegurança.
Movimentos como #MeToo, #BlackLivesMatter e #TimesUp expuseram e combateram assédio sexual, discriminação racial e desigualdade de género. Tais movimentos, amplificados pelas redes sociais, deram voz a milhões de mulheres, criaram uma consciência coletiva e pressionaram a criação de novas políticas e legislações aplicáveis. Em 2015, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU estabeleceram a “Igualdade de Género” como umas das metas a cumprir na Agenda 2030, o que dá força ao compromisso global de eliminar todas as formas de discriminação contra meninas e mulheres, promovendo a sua participação plena e efetiva em todos os níveis de decisão na vida política, económica e pública. A Inteligência Artificial generativa e os grandes modelos de linguagem (LLMs), como o ChatGPT ou o Gemini, são a grande força motriz tecnológica atual e, também aqui, as mulheres desempenham papéis fundamentais no seu desenvolvimento e aplicação.
Fei-Fei Li é uma dessas figuras. Tendo emigrado da China para os Estados Unidos com 16 anos, enfrentou barreiras culturais e linguísticas. Estudou física na Universidade de Princeton e concluiu o doutoramento em engenharia elétrica na Caltech. Em 2009, como diretora do Stanford Artificial Intelligence Lab, desenvolveu o ImageNet – um banco de dados essencial para o desenvolvimento de sistemas inteligentes capazes de interpretar e compreender imagens. Estes avanços computacionais estão na génese de tecnologias como o reconhecimento facial, o desbloqueio de smartphones, os sistemas de segurança e vigilância ou os assistentes virtuais como Siri, Google Assistant ou Alexa, que além de comandos visuais, compreendem contexto e ambiente para realização de tarefas diárias (enviar mensagens, definir lembretes e controlar dispositivos domésticos inteligentes).
Sabia que Susan Wojcicki foi a pessoa que alugou a garagem a Larry Page e a Sergey Brin, em 1998, e foi ali que se fundou a Google? Curiosamente, Susan viria a ser uma das primeiras colaboradoras da Google (Nº16) e ficou conhecida por liderar a equipa que supervisionou a aquisição do YouTube, em 2006. Sob a sua liderança, o YouTube transformou-se na maior plataforma de vídeos do mundo. Em 2023, Susan Wojcicki deixou o YouTube, mas continua a ser uma figura influente na indústria tecnológica. Trabalhou como consultora para a empresa Alphabet (que controla Google e YouTube) e dedicou-se a causas de inclusão e diversidade no setor.
Melinda Gates formou-se em ciências da computação e economia na Universidade Duke, sendo uma das primeiras mulheres a trabalhar na Microsoft, em 1987. Apesar de ser amplamente conhecida por ter casado com como Bill Gates, Melinda alcançou fama na empresa por mérito próprio e pela sua perspetiva de desenvolvimento de software voltada para o utilizador. Como gestora de produto, trabalhou em projetos como Publisher, Microsoft Bob, Encarta e Expedia. Atualmente, Melinda Gates é reconhecida pelo seu trabalho filantrópico. A Fundação Bill e Melinda Gates é uma das maiores fundações privadas do mundo e foca-se em áreas como saúde global, educação, acesso à tecnologia e empoderamento feminino. Melinda fundou também, em 2015, a Pivoyal Ventures –uma empresa de investimento e incubação focada em promover as mulheres empreendedoras e a igualdade de oportunidades.
Ursula Burns nasceu num bairro social nova-iorquino e enfrentou desafios socioeconómicos desde cedo. Com determinação, acabou por formar-se em engenharia mecânica e entrou na Xerox, como estagiária de verão, em 1980. Contra todas as probabilidades, Burns subiu na hierarquia corporativa e, em 2009, fez história ao tornar-se CEO da Xerox e a primeira mulher negra a liderar uma empresa da Fortune 500. Durante a sua carreira desempenhou um papel importantíssimo na transformação e modernização da empresa – a Xerox diversificou os negócios para além da venda de impressoras e passou a focar-se em serviços de negócios e tecnologias de gestão documental. Burns também supervisionou a aquisição da Affiliated Computer Services (ACS), em 2010, uma decisão estratégica que ampliou as competências da Xerox em serviços de terceirização de processos de negócios e gestão de documentos digitais. Esta aquisição ajudou a Xerox a adaptar-se ao mundo digital e manteve a empresa competitiva no mercado.
LILIANA CASTRO
CEO da FES Agency e Cofundadora da Portuguese Women in Tech
É essencial implementar políticas de diversidade e inclusão, promover modelos femininos de sucesso, apoiar iniciativas de educação e mentoria, e criar ambientes de trabalho que valorizem e respeitem a contribuição de todos.
Os airbags foram – durante muitos anos – projetados com base em dados de segurança que usavam exclusivamente modelos masculinos. Isto resultou em lesões mais graves para mulheres e crianças. Quando as mulheres engenheiras e cientistas passaram a contribuir para o seu desenvolvimento, os airbags passaram a ser mais seguros para todos. Ter mais mulheres a trabalhar em tecnologia não é apenas uma questão de justiça e igualdade, é mega relevante a nível estratégico para a inovação.
Em 2019, a Portuguese Women in Tech, em parceria com a Deloitte, lançou o primeiro estudo em Portugal que analisou extensivamente a realidade das mulheres a trabalhar em tecnologia. Estas mulheres enfrentam uma série de desafios que dificultam a sua progressão e sucesso: estereótipos de género, falta de representação, desigualdade salarial, falta de apoio e flexibilidade no trabalho, entre outros. Para enfrentar tais desafios, é essencial implementar políticas de diversidade e inclusão, promover modelos femininos de sucesso, apoiar iniciativas de educação e mentoria, e criar ambientes de trabalho que valorizem e respeitem a contribuição de todos.
Uma mulher que considero fonte de grande inspiração é Ada Lovelace, reconhecida como a primeira programadora de computadores. Saltando da tecnologia, não posso deixar de mencionar Hillary Clinton e Michelle Obama. E no panorama nacional, mulheres como Ticha Penicheiro (primeira mulher portuguesa na WNBA, maior liga de basquetebol do mundo); Rita Piçarra (ex-diretora financeira da Microsoft Portugal, que se reformou aos 44 anos); e, claro, Cristina Fonseca, que cofundou uma das maiores tecnológicas nacionais, a Talkdesk.
AS QUE PODEM SER O QUE QUISEREM (SERÁ?)
Nos últimos anos, temos visto que o mundo avança a diferentes velocidades. Em 2018, a Arábia Saudita permitiu que as mulheres conduzissem, um marco na luta pelos direitos femininos no país. No ano seguinte, o Irão começou a permitir que as mulheres assistissem a jogos de futebol em estádios, acabando com uma proibição de décadas. Em contraste, em 2021, os Talibãs no Afeganistão retiraram muitas das poucas liberdades conquistadas pelas mulheres (fim do ensino secundário e superior, proibição de trabalhar fora de casa, obrigatoriedade de tapar o rosto em público, fim da representação no governo…). Já França, em 2024, tornou-se o primeiro país do mundo a consagrar o direito ao aborto na sua Constituição, refletindo um compromisso progressista com a saúde e os direitos reprodutivos das mulheres.
Contudo, nenhum direito está garantido. Os regimes totalitários e repressivos estão novamente em ascensão, e as leis que protegem os direitos das mulheres são facilmente revogadas (despenalização de certos tipos de violência doméstica na Rússia, em 2017; Roe v. Wade, em 2022, que derrubou o direito ao aborto conseguido em 1973 nos EUA).
Até nos países ditos mais avançados, todos os dias são de luta. Continuam a prevalecer as narrativas ocidentais pedagógicas, literárias, sociais e culturais gloriosas protagonizadas por reis, navegadores, colonizadores, papas, bravos soldados e chefes de estado homens. E nem sempre o slogan da boneca Barbie, “You can be anything” é possível de cumprir. Ver um jogo de futebol feminino na televisão ainda é motivo de chacota.
Candidatas a cargos públicos são vistas com estranheza e oportunidade de piadas fáceis sobre aparência física. As startups lideradas por mulheres continuam a receber menos apoios e investimento. Apenas um em cada três licenciados em áreas STEM são mulheres. A presença de mulheres em empresas tecnológicas ou ligadas ao setor tecnológico é de apenas 37% (McKinsey). Desde a sua criação em 1901 até hoje, os Prémios Nobel foram concedidos a um total de 989 indivíduos, mas apenas 65 dos laureados (6,57%), são mulheres.
Como mulher, esposa e mãe, e mesmo vivendo num país onde, há apenas 50 anos vigorava um regime político ditatorial no qual as mulheres não podiam viajar, trabalhar ou abrir uma conta bancária sem autorização do marido, considero-me afortunada. Hoje, faço até parte de uma união política e económica de 27 países que trabalha diariamente para consagrar os direitos das mulheres.
Portanto, no final, é sempre a elas que agradeço. A todas as que, desde os primórdios da humanidade, me abriram caminho e permitiram que possa estudar, escolher uma profissão, ter liberdade de pensar e escrever este artigo sentada à mesa de uma empresa tecnológica rodeada de outras muitas mulheres que são designers, software developers, consultoras de negócio, investigadoras e até CEO, muito obrigada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) Só 15% dos editores voluntários da Wikipedia são mulheres e menos de um quinto do conteúdo é dedicado a biografias femininas. Iniciativas como a Wikiesfera (Espanha), Whose Knowledge? (EUA), WikiDonne (Itália) e Les Sans Pages (Suíça), trabalham para tornar as mulheres mais visíveis na Wikipedia.
(2) O movimento Herstory surgiu em contexto feminista, nas décadas de 1960-70. A alteração à palavra “history” é uma crítica à historiografia tradicionalmente escrita como “his story”, ou seja, do ponto de vista masculino. Robin Morgan, ativista política americana, foi das primeiras a usar o termo no livro “Sisterhood is Powerful: An Anthology of Writings from the Women’s Liberation Movement”, publicado em 1970.
(3) Aspásia era frequentemente chamada de “hetaira”. As hetairas eram mulheres com educação e alto status, que acompanhavam homens influentes em eventos sociais.
(4) Ao longo da história, muitas mulheres tiveram de se disfarçar de homens ou adotar pseudónimos masculinos para exercerem profissões às quais estavam vedadas. Ainda no século XIX, Margaret Ann Bulkley teve de se disfarçar de Dr. James Barry para poder estudar medicina e exercer como cirurgiã no exército britânico; e Mary Ann Evans escreveu sob o pseudónimo masculino George Eliot para ser levada a sério na literatura.
(5) Babbage ficava extremamente irritado com os erros frequentes que apareciam nas tabelas de logaritmos, utilizadas em navegação e engenharia. Numa reunião da Sociedade Astronómica Real, chegou mesmo a dizer: “Quem me dera que estes cálculos fossem feitos por vapor!”. Esta irritação levou-o a conceber a Máquina Diferencial, a antecessora da Máquina Analítica, para automatizar os cálculos, poupar tempo e eliminar erros humanos. Algumas partes da Máquina Analítica encontram-se expostas no Museu da Ciência de Londres.
(6) A primeira mulher a ganhar um Oscar, na primeira cerimónia realizada (1929), foi Janet Gaynor. Recebeu o prémio de Melhor Atriz por três filmes diferentes: “Seventh Heaven”, “Sunrise: A Song of Two Humans” e “Street Angel”.