Digitalização na Saúde: como evitar novas formas de exclusão?
A digitalização tem-se afirmado como um dos maiores impulsionadores da modernização dos cuidados de saúde em todo o mundo. Dos sistemas de registo clínico eletrónico até à IA aplicada ao diagnóstico, passando pelas soluções de telemedicina e monitorização remota, a tecnologia abre portas a uma prestação de cuidados mais eficaz, eficiente e, potencialmente, mais equitativa. Contudo, nos países menos desenvolvidos, onde persistem fragilidades estruturais e sociais profundas, esta revolução digital exige um olhar atento. Se não for conduzida com sensibilidade, planeamento e inclusão, corre o risco de transformar-se num novo fator de exclusão para as populações mais vulneráveis.
De acordo com um relatório da União Internacional das Telecomunicações (UIT), 2,6 mil milhões de pessoas – cerca de um terço da população mundial – continuam sem acesso à internet. Esta realidade concentra-se sobretudo em regiões da África subsaariana, sul da Ásia e zonas rurais da América Latina, onde o acesso a dispositivos digitais, eletricidade e infraestruturas de conectividade continua limitado. Mesmo onde existe cobertura de rede, fatores como o custo elevado dos dados móveis, a partilha de dispositivos no agregado familiar e a ausência de literacia digital impedem uma utilização efetiva dos serviços digitais. Assim, enquanto em algumas regiões a transição para sistemas de saúde digitais representa uma evolução natural, noutros contextos pode significar uma barreira ao acesso.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), na sua Estratégia Global para a Saúde Digital 2020–2025, reconhece o potencial das tecnologias digitais para melhorar a cobertura e a qualidade dos serviços, mas alerta que a sua implementação deve estar alinhada com os princípios de equidade, ética e direitos humanos. A OMS sublinha que os países devem garantir que as suas populações têm a capacidade de utilizar, compreender e beneficiar destas tecnologias, o que exige investimentos estruturais em literacia digital e formação profissional, particularmente nos contextos mais frágeis.
A IA representa um campo emergente particularmente promissor, mas que exige igualmente prudência. Ferramentas de IA já demonstraram resultados positivos no apoio ao diagnóstico de doenças como tuberculose, retinopatia diabética e certos tipos de cancro, mesmo em contextos com escassez de profissionais especializados. No entanto, a própria OMS, no seu relatório de 2021 sobre ética e gestão da IA, adverte para o risco de enviesamento nos algoritmos. Os sistemas de IA são treinados com grandes volumes de dados, e se esses dados não representarem devidamente a diversidade global (basta lembrar que provêm maioritariamente de países mais desenvolvidos) – os resultados podem ser imprecisos ou injustos. A OMS defende que os algoritmos devem ser transparentes, auditáveis e testados em diferentes populações antes de serem implementados em larga escala.
Apesar dos riscos, os benefícios já demonstrados em vários contextos mostram que a digitalização na saúde melhora significativamente as realidades em que é aplicada. Em vários países com menor capacidade económica, programas simples baseados em mensagens de texto têm contribuído para melhorar a adesão a consultas pré-natal, aumentar as taxas de vacinação e reforçar o seguimento de doentes crónicos. A própria OMS e a UNICEF destacaram, em relatórios recentes, o papel das tecnologias digitais na resposta à pandemia de COVID-19, nomeadamente na comunicação com a população, no rastreamento de contactos e na coordenação logística em regiões socioeconomicamente mais vulneráveis. Estes exemplos mostram que, quando bem planeadas e executadas, as soluções digitais podem ter um impacto real e positivo na saúde pública, mesmo em ambientes com infraestruturas limitadas.
Para que a digitalização da saúde seja inclusiva, são necessárias estratégias que combinem inovação tecnológica com responsabilidade social. Isso implica um esforço coordenado para garantir que ninguém fique para trás. Os governos devem investir na criação de ambientes propícios à inovação, mas também no reforço da infraestrutura digital, na capacitação dos profissionais e na literacia digital das populações. É essencial que as soluções tecnológicas sejam concebidas em diálogo com os seus utilizadores, respeitando as suas necessidades, os seus contextos e capacidades. Nenhuma tecnologia é uma panaceia por si só – o grande diferenciador está em como a utilizamos. Ao reconhecer e enfrentar os obstáculos éticos, e ao investir em soluções que privilegiem a equidade e a segurança, podemos evitar que os avanços se tornem um novo tipo de exclusão. Pelo contrário, há a oportunidade de fazer deles ferramentas de inclusão sem precedentes.
A transformação digital da saúde, quando guiada por valores humanos e adequação local, tem potencial para fortalecer sistemas de saúde e reduzir desigualdades, promovendo um futuro em que a inovação pertença a todos.
* Este artigo foi publicado originalmente no Jornal Médico.